Fazendo uma IPA tropical parte 2: receita e brassagem.

De volta ao Inglorious-LAB. Finalmente os lúpulos chegaram e transferimos nosso laboratório para a cidade natal da cervejaria. Agora é hora de prepararmos a receita e fazer a brassagem da IPA discutida no texto passado, portanto esse texto será dividido em duas partes e tem um monte de nota de rodapé e referência de artigos científicos para quem curte.

RECEITA

Já discutimos anteriormente todos os nossos insumos e o que esperamos para essa IPA, portanto agora nossa intenção é construir a receita. Tínhamos inicialmente escolhido os grãos:
74,0% Malte Pale Ale (2 row)
12,4% Malte Vienna
12,4% Malte Munich 10L
01,6% Malte Chocolate

Porém quando o malte chegou nosso fornecedor tinha mandado Caramunich II¹ e não Munich, como não dava mais tempo de trocar, refizemos as contas e usamos:

74,0% Malte Pale Ale (2 row)
21,4% Malte Vienna
03,3% Malte Caramunich II
01,6% Malte Chocolate


Já argumentamos anteriormente que nossa intenção é usar apenas cevada maltada, mas você pode usar centeio, trigo e aveia, inclusive a aveia não maltada é bem comum para dar mais corpo à IPAs [1]. O valor do malte ficou fechado em 40 reais.


Os quatro maltes utilizados.

Discutimos, lemos, estudamos, pesquisamos e testamos muito com cerveja. De várias discussões com micros cervejarias fodas brasileiras e americanas, o consenso comum é que uma IPA fodedora tem que ter por volta de 20g de lúpulo/litro e isso é deus e o diabo da receita, pois ao mesmo tempo que dá todo o poder a IPA também aumenta substancialmente seu preço, a complexidade de fabricação e a quantidade de taninos² na sua cerveja. Portanto, iremos utilizar estúpidas 22g/L, mas com cuidado.

Do planejamento inicial para hoje, nós tiramos da nossa lista o Apollo e acrescentamos o Mosaic, inicialmente não ia utilizá-lo, mas achei por um valor bom e decidi comprar. Portanto nossos lúpulos são:

 50 g Mosaic
 50 g Galaxy
 50 g Simcoe
 50 g Amarillo
 50 g Centennial
 50 g Cascade
100g Citra
Estamos apaixonados por esse Amarillo da Eureka!

Nossa impressão dos lúpulos da Eurka, que compramos com o Thiago Palmeira (compre com ele), foi a melhor possível. O Amarillo estava D-O C-A-R-A-L-H-O, os demais também não deixaram a desejar nem um pouco. Recomendamos demais o produto, custo benefício excepcional. Gastamos 109,60 reais nos 440g de lúpulos que recebemos.

Para a fermentação escolhemos a levedura New World Strong Ale - Mangrove Jacks M42, que pagamos 14,50 no pacote com 11g. O custo total de insumos foi de: 109,60 + 14,50 + 40 = R$ 164,10. Considerando que pretendemos engarrafar 20 litros, só de insumos gastamos R$ 8,21 por litro.... TERRÍVEL, HORRÍVEL, ASSUSTADOR. Somando garrafa, rótulo, tampa, custos de produção e lucro será difícil vender uma garrafa de 300mL por menos de 15 reais, temos que melhorar muito esse preço ainda antes de torná-la comercial. Em breve começaremos a tratar aqui no blog sobre como reduzir custos de produção.


BRASSAGEM

O equipamento que usamos foi nossa panela de 30 litros automatizada para testes, que faz toda a mosturação sozinha e é controlada por smartphone (ela foi feita por nós e ensinaremos como fazer em breve). Também usamos uma panela com fundo falso para fazer a recirculação e lavagem, uma bomba de ¼ CV adaptada com polias para fazer a recirculação e uma panela de fervura de 35 litros.


Mosturação

Como conhecemos bem as panelas que usamos no LAB pra testar receitas, adicionamos todo o malte em 20,5 L de água há 68ºC, o que fez a temperatura descer para 62ºC, que é a nossa primeira rampa, a beta-amilase. Como queremos um corpo médio, deixamos por cerca de 45 minutos.

Não fizemos a rampa de betaglucanos e de quebra de proteínas (~45ºC/55ºC), pois os maltes que escolhemos são no mínimo 40% modificados. Não faça a rampa proteica se não estiver usando trigo ou centeio, pois você não possui uma quantidade relevante de proteínas com grande peso molecular. Caso faça essa rampa, poderá quebrar proteínas de médio peso molecular, fazendo a cerveja ficar aguada e com pouca retenção de espuma [2]. A rampa de 45°C é muito boa se você usar adjuntos e há quem acredite que ajude um pouco a melhorar o rendimento do malte [10].




A segunda parada foi em 66ºC por mais 20 minutos – essa parada favorece tanto a alfa quando a beta-amilase. Na terceira parada, subimos até 72ºC durante os próximos 15 minutos. Fazemos isso para tentar extrair o máximo de açúcares fermentáveis, mas sempre priorizando a beta.

Finalmente, o mashout foi feito em 78ºC por 10 minutos – É fundamental para inativar as enzimas da mosturação, não fazer o mashout pode cagar sua cerveja³. Mas tome cuidado, pois temperaturas acima de 78ºC podem extrair taninos.

Se você quiser, pode fazer uma única rampa com temperatura entre 66ºC e 68ºC, pois favorece tanto a beta quando a alfa-amilase, mesmo sendo abaixo da temperatura ideal da alfa, com isso se cria um mosto muito fermentável e não precisa fazer duas rampas.

Nesse momento, nosso OG medido a temperatura ambiente estava em 1066 SG. Fizemos a recirculação e a lavagem (fly sparge) da maneira tradicional, com isso baixamos a OG para 1055 SG, o que nos deixou puto, pois nossa eficiência ficou alta pra caralho. 88,2%, é absurdo, a gente queria 75% no máximo. Vamos corrigir isso na próxima brassagem.
pH da água de mosturação em 5.4

Correção da água de mosturação. Sulfato 7 vezes maior que o cloreto.


Fervura

Terminada a mosturação, começa a fervura. Levamos para a panela 29,5 litros de mosto, a contar com nossa evaporação de 4 L, estava tudo perfeitamente dentro do esperado.

Devido a quantidade bem grande de lúpulo, os separamos em copos para não nos perder, já que temos que fazer várias adições para conseguir o IBU planejado. Foi aí que vi que tínhamos 40 gramas a mais (Valeu Eureka, vocês foram fodas!), então direcionei para o dry hop e teremos 103g para isso.

Nossa adição de lúpulo foi um tanto complexa, teve first wort hopping, hop bursting,hopstand e terá dry hop.


1 – First Wort Hopping: 5g de Cascade.

Muito se fala de FWH como uma grande jogada da adição de lúpulo, dando um amargor mais redondo, contribuindo para o sabor e aroma, mesmo que isso seja contra intuitivo. Porém a ciência é uma vadia desalmada, ainda que grandes best-sellers de cerveja tenham afirmado categoricamente a funcionalidade do FWH, cada dia mais as pesquisas [10] mostram que o método é uma lenda, surtindo exatamente o mesmo efeito no amargor, no aroma e no sabor da cerveja que uma adição de 60 min. A única diferença real entre o FWH e a adição de 60 min. é que o primeiro diminui a formação de espuma na fervura do mosto quando você adiciona mais lúpulo e é por isso que vamos usar. Portanto não esquente com a quantidade de co-humulona do lúpulo usado no FWH.


Todo mundo separadinho dentro da câmara fria.

Início do Hop busrting

2 – Adição em 15 minutos: 10g de Mosaic.

Mosaic possui um sabor de maracujá incrivelmente acentuado, por isso começamos por ele em 15 minutos.

3 – Adição em 10 minutos: 10g de Amarillo, Centennial, Citra, Cascade e mais 5g de Simcoe.

4 – Adição em 5 minutos: 20 g de Citra, 15g de Simcoe e Cascade, 10g de Amarillo e 10g de Mosaic.

5 – Adição em 3 minutos: 20g de Centennial, 15 g de Galaxy.

Para ser sincero, o Hop bursting não seguiu nenhuma regra para ser estruturado dessa forma, escolhemos essas quantidades e tempos baseados nos alfa-ácidos para atingir a quantidade de IBUs desejada, foi apenas isso. Eu apostaria pra ganhar que qualquer permutação desses lúpulos levaria exatamente ao mesmo resultado no sabor e aroma, mas não no amargor.

Pois bem, começamos a resfriar a cerveja e é aqui que entra o hopstand. Se quiser pode usar um hopbag, mas precisará usar uns 10/15% a mais de lúpulo para ter o mesmo efeito, por esse motivo não usaremos.

Desligamos o fogo e acrescentamos:

6 – Adição por 10 minutos: 15g de Mosaic, Simcoe, Amarillo, Citra e Galaxy.

O tempo de hopstand é muito relativo e você pode fazer ele de várias formas diferentes. Por exemplo, pode deixar seu mosto fervido descansado/resfriando naturalmente, ou pode começar a resfriá-lo imediatamente e programar o tempo máximo de hopstand para o tempo que o mosto demora para chegar a temperatura de 85ºC.
Fermento hidratado.

Calculamos o resfriamento do mosto para levar 10 min. até atingir 86ºC, então fizemos a última adição de lúpulo antes da fermentação, que foi:

7 – Postboil hop: 20g de Galaxy, 15g de Mosaic e simcoe, 10g de Citra e Cascade.

Enquanto mosto resfriava, fervemos 150 mL de água mineral com pH = 5.6, depois resfriamos até 35ºC e acrescentamos a levedura New World Strong Ale - Mangrove Jacks M42, mexemos levemente e deixamos descansar até que o mosto estivesse a temperatura de 24ºC.

INFORMAÇÃO IMPORTANTE: Não é obrigatório reidratar seu fermento, se você fizer isso por volta de 35ºC o número de células viáveis será absurdamente maior. Nossa fermentação começou cerca de 30 min. depois da inoculação, como você pode ver no vídeo abaixo.


Pois bem, quando o mosto atingiu 24ºC tivemos um problema de verdade, como a temperatura ambiente estava em refrescantes 35ºC, o chiller não estava dando conta de resfriar a cerveja rapidamente abaixo de 24ºC. Para agilizar o resfriamento, transferimos o mosto fervido para bombona, oxigenamos por 20 minutos com uma bomba, fizemos a inoculação da levedura e mandamos para nossa câmara fria há -14°C, aí ele chegou rapidamente em 17ºC e transferimos pra geladeira. 30 minutos depois a levedura já estava a mil. Nesse momento nossa gravidade era de 1055 SG.

Sim, não usamos airlock porque detestamos.


Pontos negativos

Além da demora em baixar a temperatura de 24 ºC para 17 ºC e da eficiência alta demais, duas outras coisas nos desagradaram bastante. Primeiro; sobrou 4,5 L de trub quente repleto de lúpulo que poderia ser reutilizado. Nosso trub quente costuma ficar por volta de 2 L, então não esperávamos essa quantidade, não planejamos como reutilizar e usamos um balde não higienizado para medi-lo, PUTA ERRO GROTESCO. Segundo; o malte chocolate era mais escuro do que nos falaram e a IPA está mais escura do que deveria, só mancada do fornecedor de malte!

Pontos positivos


O sabor do lúpulo e do malte parecem estar na proporção correta para o mosto não fermentado, assim como o amargor está perfeitamente como planejamos e o chocolate se encaixou melhor do que o previsto. Estamos tomando lexotan de tão ansiosos.


É com essa cor horrível que uma IPA com 22g/L de
lúpulo vai para o fermentador.


Próximos passos

Após a fermentação teremos perdido parte dos aromas do lúpulo, faremos então um dry hop para realçá-los. O dry hop não é o melhor método para aumento do sabor, o método que realmente contribui para esse fator é o hopstand [14], porém ele é ainda o melhor método para extrair aromas do lúpulo, essa é a razão pela qual faremos dry hop.

Assim que terminar a fermentação (entre 6 e 7 dias), faremos uma fermentação secundária¹⁰, para que as leveduras consumam os compostos indesejados que elas mesmas criaram¹¹. Como a fermentação primária já acabou, não sobrou quase nada de açúcares fermentáveis e o pH está baixo, portanto vamos abrir o fermentador sem nos preocupar com contaminações e iremos adicionar o lúpulos do dry hop, você pode usar bag, mas nós iremos adicionar direto.

8 – 4 dias: 60g de Citra, 23g de Amarillo, 10g de Cascade e Centennial.


Durante a fermentação secundária, iremos subir a temperatura cerca de 1ºC por dia até atingir 24/23ºC. Feito isso, retire o bag (caso esteja usando) e não teremos mais adições de lúpulo.

Depois é hora de maturar. Primeiro descartamos o trub e transferimos a cerveja para a tina de maturação. Como é uma IPA, 5 a 10 dias maturando em 2ºC está ótimo. Caso você não use bag no dryhop, provavelmente terá um trub frio maior. Provavelmente o dry reduza seu IBU¹².

A carbonatação será com açúcar invertido na própria garrafa. Manteremos ela entre 20 e 21ºC de 10 a 14 dias e finalmente estará pronta.

Esse tópico será editado assim que fizermos o invase.

Notas:


1 - Caramunich é o malte caralamelo munich da Weyermann, ele possui muitas similaridades com malte crystal 120L, por isso evite usar mais de 15%.

2 - Tanino é um polifenol  que a evolução  deu as plantas para as proteger de ataque de herbívoros. Na cerveja ele causa adstringência e pode vir tanto do malte quanto do lúpulo. Embora o Brülosophy tenha mostrado de maneira razoavelmente confiável que nem mesmo juízes do BJCP possuem lá muita capacidade de saber o que é adstringência, fica claro que seu excesso causa uma sensação não agradável ao paladar que pode ser confundido com outros off-flavors.

3 - Se o mashout não for feito, sua alfa e beta-amalise continuarão enquanto a temperatura de lavagem estiver entre 55 e 75°C, isso fará você perder o controle sobre a quantidade de açúcares fermentáveis e a quebra de proteínas, podendo deixar seu mosto mais viscoso e a sua cerveja com bem menos corpo. Cabe ressaltar que, como mostra [12], mesmo em temperaturas de 78ºC pode haver um pouco de alfa-amalise, ficando ela realmente inativa acima de 80ºC. 

No site do concerveja o Daniel fez um post bem legal sobre mashout, com explicações bem pertinentes.

4 - A Co-humulona é um dos óleos principais do lúpulo, muito se discute sobre sobre seu papel no amargor. O que se tem mostrado é que usar lúpulos com baixa porcentagem desse óleo, leva a cervejas com amargor mais agradável. Então se você quer uma amargor mais legal, é melhor repensar nos lúpulos de todas a adições, não apenas do FWH.

5 - Quando você usar um bag, no geral, você diminui a superfície de contato do lúpulo com o mosto, isso reduz em até 15% (valor não exato) a eficiência desses lúpulos.

6 - Aqui você pode ver a diferença entre o número de células viáveis de um fermento não hidratado e em temperaturas mais baixas para um fermento hidratado por volta de 35ºC.

7 - No processo de trasfega da penela de fervura para o fermentador, o mosto em momento algum ficou em contato com o ar, a oxigenação foi feita com uma bomba acoplada a um filtro de ar bacteriológico e a uma pedra difusora de inox. Porém você pode fazer a oxigenação fazendo uma cascata da panela de fervura para o fermentador, depois dar uma sacudida no fermentador.

8 - Tome muito cuidado com a diferença de temperatura entre o fermento e o mosto, pois as leveduras são sensíveis a choques de temperatura. Evite inocular com uma diferença superior a 8ºC.

9 - Devido a produção de gás carbônico na fermentação, parte do seu aroma de lúpulo vai embora, infelizmente.

10 - Tecnicamente, não há muito sentido em chamar essa etapa de "fermentação", pois praticamente ela não ocorre, o correto seria chamar de "descanso do diacetil", ou mesmo maturação. A fermentação secundária que realmente acontece é quando você faz o primming na garrafa.

11 - A levedura precisa de tempo para consumir vários compostos indesejados que ela mesma produziu durante a fermentação, um dos mais famosos é o diacetil, que deixa sua cerveja com sabor amanteigado.

12 - SIM, Dryhop pode reduzir seu IBU, pois devido a quantidade bem grande de extrato vegetal do lúpulo que estamos usando, ele pode atuar como filtro e reduzir a quantidade de iso-alfa-ácidos na cerveja.  



Referências

[1] - Steele M. IPA: Brewing Techniques, Recipes and the Evolution of India Pale Ale. Brewers Publications (2012).


[2] - Kunze W. Technology brewing and malting. VLB Berlin (2004).

[3] - Bamforth, Charles W. Brewing materials and processes: a practical approach to beer excellence. Academic Press (2016)

[4] - Eßlinger, H.M. Handbook of Brewing: Processes, Technology, Markets. Wiley VCH. (2009)

[5] - Fergus G. Priest, Graham G. Stewart. Handbook of Brewing, Second Edition (Food Science and Technology 157). CRC Taylor & Francis. (2006)


[6] -  Dennis E. Briggs, Chris A. Boulton, Peter A. Brookes, Roger Stevens. Brewing Science and Practice. Woodhead Publishing in Food Science and Technology. CRC Press. (2004).

[7] - Mallett j. Malt: a Practical Guide from Field to Brewhouse. Brewers Publications. (2014).

[8] - Hieronymus, S. For the love of hops: the practical guide to aroma, bitterness, and the culture of hops. Brewers Publications. (2012).


[9] - Zainasheff J., White C. Yeast: the practical guide to beer fermentation. Brewers Publications. (2010).


[10] -Palmer J, Kaminski C. Water: A Comprehensive Guide for Brewers. Brewers Publications. (2013).

[11] - Fachverlag, H. C. Manuals of Good Practice - EBC Brewers. (2000)
 
[12] - Narziss, L. Abriss der Bierbrauerei. (2005)

[13] - Linalool. A Key Contributor to Hop Aroma. (2009)

[14] - Havig, V.  - Maximizing Hop Aroma and Flavor Through Process Variables. (2010)
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